sexta-feira, 31 de julho de 2009

VIOLÊNCIA: uma breve reflexão

Em Florianópolis, acontecem, por ano, 17,64 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. O índice é 76,4% superior ao limite considerado aceitável pela ONU (10 homicídios). É a capital mais violenta do Sul do país — o índice é de 15,5 em Porto Alegre e não passa de 15,5 em Curitiba. Outras 15 cidades catarinenses estão na mesma situação da capital — algumas, pior. Em Camboriú, a média é de 75 assassinatos por ano. Segundo as estatísticas oficiais, cerca de dois milhões de catarinenses convivem com índices de homicídios acima dos limites toleráveis.

Os números são incompatíveis com os indicadores sociais do Estado, admitem especialistas ouvidos pelo Diário Catarinense, que divulgou os dados (Ed. 19.7.09). Para alguns, a origem estaria no incremento do tráfico de drogas. As causas gerais do fenômeno, contudo, ninguém, concretamente, se arrisca a apontar. De fato, não se trata de tarefa fácil.

É preciso reconhecer que há pessoas capacitadas, dentro e fora da Polícia, seriamente preocupadas com o problema. Mas apenas conhecimento e vontade não o resolvem: são necessárias ações — que dependem dos governos. E é exatamente aí que os problemas começam. Primeiro, porque é trabalhoso pesquisar os motivos da violência e da criminalidade — e trabalho sério e difícil não tem sido o forte dos governos. Segundo, porque é tarefa demorada e pouco visível — praticamente não aparece e pouco impressiona o eleitor. Por isso, em vez de se ocuparem seriamente com o assunto, têm tido o hábito de optar pela exposição de viaturas policiais ao longo das avenidas. Nem sempre perquirem se o investimento é adequado ou prioritário; ou se há condutores habilitados para dirigi-las: importa a produção do espetáculo, a ostentação do ato de governo — como se isso, por si só, num passe de mágica, garantisse a segurança dos cidadãos.

Entrementes, sucedem-se reuniões de cúpula nos espaços seguros e intangíveis das hostes governamentais. Numa espécie de planejamento hedonístico, cuidam de sucessão, de composições partidárias, de distribuição de cargos, de marketing eleitoral, de emendas orçamentárias e direcionamento de verbas... Ninguém costuma deter-se para indagar por que os assassinatos estão ocorrendo ou para discutir o que, efetivamente, poderia ser feito para evitá-los ou reduzi-los. E é nesse vácuo, marcado pela indiferença e pela irresponsabilidade política, que se desvanecem os ânimos e as esperanças — tanto dos agentes que se propõem a combater a violência, quanto da população, que continua submetida ao jugo da angústia e do medo. A dor não chegou às cúpulas do poder — ainda.




terça-feira, 28 de julho de 2009

A CASTRAÇÃO DA REPÚBLICA

O Ministério Público levou um puxão de orelha. Aconteceu recentemente na solenidade de posse do novo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. No seu discurso, o Presidente Lula foi incisivo: disse que o Ministério Público “tem a obrigação de agir com a máxima seriedade, não pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação, mas pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado”. E advertiu: “... porque um dia vai aparecer alguém que acha que vocês são demais e vai mandar mudanças para o Congresso Nacional. [...] E nós sabemos que a mudança nunca será para mais liberdade, será para mais castramento”.

Em certa medida, tem razão. Nenhum agente público pode demitir-se do compromisso com a imparcialidade, a prudência e a discrição — nem mesmo o Presidente ou o Procurador-Geral da República. Ficou evidente, todavia, que não estava preocupado em realçar esta questão. Queria mesmo é preservar as “biografias”, poupá-las de constrangimentos que poderiam advir de circunstanciais arroubos de virilidade institucional por parte de integrantes do Ministério Público. É a interpretação que mais se afeiçoa ao perfil político do Presidente depois de proclamar a intangibilidade do senador José Sarney, a despeito da repulsa pública ao seu desempenho como presidente do Senado Federal. Preocupa. Não porque possa vergar o Ministério Público, mas porque, na tentativa de proteger “biografias”, sugerindo um tratamento especial a quem as possui, o discurso teria negligenciado as cautelas devidas àqueles que não as possuem, tal como acontece com a freguesia diária das páginas policiais — que, muitas vezes à margem do contraditório, apresenta-se ainda como caudatária da impetuosidade da mídia e do aparato repressivo estatal.

Visto de outro ângulo, o discurso do Presidente exibiu um Parlamento de reduzidas virtudes: não teria grandeza para assimilar com serenidade as críticas e censuras nutridas pela seiva da democracia; e, num ocasional acesso do sentimento corporativo, poderia fulminar, com a letalidade de seus poderes constitucionais, qualquer iniciativa aparentemente capaz de diluir ou fracionar os méritos de que se presume credor. O recado foi no sentido de ninguém, exceto os parlamentares — e, obviamente, o Presidente — poderia brilhar, ser considerado “demais”. Se isso acontecesse, as mudanças poderiam vir — “para mais castramento”.

O desvio de perspectiva é visível. Apesar de habitualmente ignorado e, às vezes, infringido, o pacto constitucional é inderrogável: Presidente, procurador-geral da República, senadores, deputados, juizes, promotores, todos os brasileiros, enfim, carregam consigo a responsabilidade de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, livre de “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Significa que, na gestão da República, não cabe exclusão nem amesquinhamento: a responsabilidade republicana precisa ser assumida na plenitude da virilidade e do vigor ético de todos os seus órgãos, Poderes e instituições. Neste contexto, é digna de repúdio qualquer cogitação ou ideia de castração política: a República é viril — uma virilidade que só se faz fecunda se respeitados, em toda a sua dimensão, o direito e a liberdade de cada brasileiro, tenha ou não uma “biografia” capaz de merecer a preocupação presidencial.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Transparência, Demagogia e Heróis

O prefeito da cidade de São Paulo decidiu colocar na internet o nome e o salário dos servidores municipais. Fez um estardalhaço. Disse que estava sendo transparente — a população precisava saber quanto o Município gastava com pessoal. Os aplausos, incluído o do presidente do Supremo Tribunal Federal, não chegaram a impressionar. Sinal de que o povo começa a ver as diferenças entre a honestidade de propósitos e a demagogia.

E, vamos combinar: se o prefeito quisesse, realmente, acabar com os funcionários fantasmas e os salários ilegais, bastava cortar a remuneração de quem não estivesse comparecendo ao trabalho ou recebendo além do devido. O impacto nos meios de comunicação talvez fosse menos estrondoso, mas os resultados práticos, por certo, seriam maiores e mais consistentes — além de juridicamente sustentáveis. Mas o problema era a ribalta política — como criar um cenário eleitoralmente auspicioso? A coisa não podia ficar dentro da normalidade. Daí, no lugar do bom senso e da eficiência, veio o arroubo, o fragor da decisão (de validade jurídica duvidosa), o berreiro dos sindicatos, as bravatas... Porque essas coisas dão ibope, colocam o personagem sob holofotes, exaltam suas vaidades, acenam com perspectivas eleitorais alvissareiras, podem influir no resultado das pesquisas.

O caso, lamentavelmente, não é isolado. Essa tendência de misturar transparência com embuste e demagogia é um fenômeno visível em praticamente todas as instâncias de governo (federal, estaduais e municipais), de norte a sul do país. Decorre da patologia moral que costuma transformar em ato de heroísmo aquilo que, em verdade, não passa de simples cumprimento do dever. Sustar o pagamento de um servidor fantasma, equipar um hospital, formar um professor, construir uma rodovia..., são obrigações do administrador público. Simples obrigações. Mesmo que as cumpra com zelo e eficiência, não se faz credor privilegiado de aplauso nem merece ser endeusado pela propaganda, às custas do dinheiro do contribuinte. Afinal, apenas cumpriu o seu dever, não é herói.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

"XERIFE SEM MUNIÇÃO"



O jornal Folha de S. Paulo pegou pesado no Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. Disse que é “uma espécie de xerife sem munição que não sabe o que acontece nas suas barbas” (ed. 6.7.09). O Conselho defendeu-se, alegando falta de dinheiro para municiar o xerife (apenas 10 milhões de reais por ano).

A crítica não surpreende. Nem pode ser considerada injusta. O problema é que a denunciada astenia do CNMP seria apenas uma singela mostra do imobilismo e da fragilidade de que padece a maioria dos órgãos públicos brasileiros, resultado da improvisação inconsequente do Estado — que os cria e difunde, mas não consegue oferecer os meios para que operem com eficiência; nem cobra os resultados que deveriam gerar. O processo parece esgotar-se nos atos formais de criação e instalação, como se estes, incensados pela propaganda pública, fossem suficientes para fazerem as coisas funcionar e legitimassem o legislador e os governos ao aplauso da população. É assim que a vaca caminha para o brejo. E tende a morrer atolada. Daí, nada recomenda insistir na criação de mecanismos de controle, acenando o propósito de corrigir desvios éticos de órgãos e instituições públicas, enquanto nos comandos superiores da Nação as lanternas morais se mantiverem apagadas ou continuarem imprestáveis para irradiar exemplos de eficiência, dignidade e justiça.

Sem dúvida, o CNMP merece a pecha de “xerife sem munição”. De repente, mais por falta de pontaria do que por falta de munição. Ou, sob outra ótica, por ter escolhido mal os alvos em que acertou.

Seja como for, o conceito de “munição”, no sentido em que foi utilizado, reclama uma revisão. O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por exemplo, tem uma arma tão eficaz quanto a do CNMP: a legitimidade para agir, garantida pela Constituição. E, para pô-la em funcionamento, dispõe de um orçamento 12 vezes maior (122 milhões de reais). Mas, paradoxalmente, começou o mês de julho com um estoque de 3,6 mil processos sem julgamento.

A indagação a ser feita é simples: até que ponto o avantajando dispêndio financeiro com a manutenção das estruturas públicas significa garantia de bons resultados? Veja-se o Senado Federal. Com seus 10 mil servidores e um orçamento de 2,7 bilhões de reais, sofre de uma anemia moral tão profunda que não consegue sequer arrastar-se até a luz. Foi obrigado a esconder seus atos e a funcionar às sombras, para não mostrar as suas vergonhas — que, para efeitos externos, são também as vergonhas do próprio Brasil.

Supõe-se superada a fase de desculpas esfarrapadas. Munição existe. O problema está na concepção e no uso do arsenal. Não adianta inflar os orçamentos, encher o cofre de dinheiro e borboletear de norte a sul do país. Porque — todos sabem — munição que realmente funciona é aquela que, modelada pelo senso de responsabilidade, se instala no coração dos homens, sob inspiração da Ética e da Justiça. Sem isso, o xerife pode armar-se até os dentes. Mas a tendência é perder o duelo — faltará pólvora moral na munição.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A BALANÇA DESIQUILIBRADA



O legislador brasileiro tem relevado uma grande dificuldade de lidar com a balança. Quando, vencida a estiagem democrática, veio a lume a Carta de 1988, nela ficou escrito que um dos objetivos fundamentais da República brasileira seria “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Além de evocação ética, a expressão se agiganta como comando jurídico de observância obrigatória. Mas não adianta, a balança continua pensa: os interesses pessoais e corporativos pesam mais que a justiça e a igualdade.

Em época mais recente, a pretexto de aperfeiçoar o Judiciário, foi editada a Emenda Constitucional 45/2004, na qual o legislador inseriu uma norma proibindo magistrados e promotores de exercerem a advocacia perante os juízos ou tribunais onde houvessem atuado, pelo menos durante três anos após a aposentadoria. Presumiu que, mudando logo de profissão, poderiam valer-se do prestígio amealhado ao longo da antiga carreira e vir a comprometer a imparcialidade das decisões judiciais, beneficiando indevidamente seus clientes.

O propósito não seria ruim se não fosse obscuro e discriminatório. Observe-se que, enquanto aos juizes e promotores é imposta uma quarentena mínima de três anos, outros agentes públicos migrado sem qualquer estágio, diretamente dos palcos esfuziantes do parlamento ou da capatazia ideológica dos governos para as cadeiras monásticas dos tribunais superiores. E, com as paixões partidárias ainda incandescentes, vão logo despejando liminares e sentenças, sem excluir do rol dos favorecidos nem mesmo os governantes que os patrocinaram, conquanto albergados nos partidos políticos cujos interesses até então defendiam com abnegação e fervor.

Pelo menos algum freio a eles deveria também ser imposto. Não é razoável nem se afeiçoa com o princípio da igualdade a premissa de que seriam menos suscetíveis a paixões do que os juizes e promotores. Por isso, a judicatura não poderia ser-lhes liberada sem peias. Não que se possa ou se deva, generalizadamente, negar-lhes a virtude da imparcialidade. Mas a questão é que, para a sociedade, ficará sempre o tormento da dúvida — se a decisão foi ou não imparcial. Isto não é bom para a paz social. Nem para a justiça.