sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A PROPÓSITO DO DIA DOS PAIS

Domingo, o segundo de agosto, é Dia dos Pais. Provavelmente, meus filhos me presentearão com alguma coisa: camisa, gravata, cinto ... E, acredito, acrescentarão um abraço. Sou um pai privilegiado. Porque muitos, certamente, não ganharão presentes – nem abraços.

Não gosto de ver privilégios. Muito menos de me ver como depositário deles. Tudo bem que tivéssemos um dia do ano dedicado aos pais – mas sem essa neura de presentes. O ideal seria se pudéssemos substituir os presentes por abraços, só abraços. Capricharíamos nos abraços – mais apertados, com mais afeto, mais emoção, mais sinceridade, mais... – um número maior de pais (e de filhos), certamente, ficariam felizes. Porque o abraço não custa nada, não pesa, não precisa ser comprado, não exige entrega com dia e hora certa. E tem mais: o abraço não tem embalagem para ser descartada, não vira sucata – coisas que contribuem para aumentar o lixo do mundo. Posso estar errado, mas cada vez mais me convenço de que o mundo precisa diminuir os comerciais e aumentar os abraços. Parece mais correto, até ecologicamente.

Creio que, na relação pai – filho, existe algo que transcende o nexo biológico sobre o qual se escora a cadeia inexorável da vida. Neste contexto, a matéria (comida, roupa, casa) seria apenas o combustível indispensável ao sustento do mecanismo superior do espírito, em cujos meandros é construída e se afirma a grandeza humana, desde as emanações mais sublimes do amor e da ética até as sensações comuns do nosso cotidiano, como o bem-estar e a felicidade. É nesta dimensão singela, sem arroubos ideológicos ou messiânicos, que costumo trabalhar o conceito de “partilha” – como se, fundindo a matéria e o espírito, pudéssemos “repartir o coração como uma hóstia, para todas as criaturas”, na expressão poética e feliz do nosso inesquecível Lindolfo Bell.

Meu pai já se foi. Pude dar-lhe poucos presentes. E não sei se lhe dei todos os abraços que merecia. Mas, em homenagem a ele, e a todos os pais que, desesperadamente, lutaram (e os que ainda hoje lutam) em busca do pão, vou pedir licença para reproduzir um poema que escrevi nos idos de 1964, quando ainda me inspirava a juventude. Poderia ter outro nome, mas prefiro manter o original. Assim:

CANÇÃO DO PAI MISERÁVEL
Orleans, 14.11.64)
I
Hoje eu trouxe pão.
Comam-no vocês, meus filhos.
Repartam-no em pedaços iguais;
E mastiguem devagar
A substância de cada pedaço.

Depois, tentem dormir.
Juntem-se bem sobre a palha
Porque a noite será longa e fria.

E, por favor,
Façam de novo uma prece.
Não importa o frio,
Não importa a fome,
Façam uma prece.
Talvez Deus, amanhã,
Possa dividir os telhados
E, quem sabe, dividir o pão.
Talvez Deus, amanhã,
Possa recolher a sobra dos banquetes
E descobrir que estamos aqui.

II
Obrigado, Senhor,
Eles dormiram.
Dormem e não pedem mais nada.
Parecem anjos — dóceis, saciados.

Mas, amanhã, vão despertar.
E de novo virá a fome,
E de novo vão querer o pão,
Que hoje acabou.

Eu já pressinto o lamento e o choro.
Eu conheço a sinfonia da dor.
Eu conheço o tamanho da misericórdia,
Nas migalhas esquecidas nas lixeiras,
Em finais de domingo.

Eu procurei culpados, Senhor.
Eu revolvi os meus dias,
Retalhei os meus gestos,
Fiz pedaços do meu coração.
Mas não achei a culpa
Nem a origem da vida gerada,
Para reverter ao começo.

Eu quis superar meus limites.
Eu quis entender os motivos da fome.
Eu forcejei com meu braço,
Para encontrar a fórmula
E as raízes do pão.

Eu me despi do orgulho.
Eu depositei minhas vestes
No altar da misericórdia,
Mas elas estavam suadas e rotas,
Por isso as recusaram.

Eu fui buscar a taça da justiça.
Mas estava nu e descalço,
Por isso não me fiz digno
De receber o troféu.

Eu quis o vinho do perdão,
Mas minha jarra era pobre
E eu não pude recolher
O pouco que sobrou.

III
Os meus filhos dormindo,
Eu não ousaria mais nada.
Mas, se me permitires, Senhor,
Peço-Te que me faças dormir também.
Mais que isso: dormir profundamente,
Para nunca mais me acordar.

Encerro: sinceramente, que nenhum pai, no Brasil ou no mundo, necessite algum dia reproduzir esta canção!